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[114] O velho despede-se do novo

31.12.04


[113] Os melhores 13 CD's de 2004

2º) Pearl Jam. Live at Benaroya Hall
3º) Jan Garbarek. In Praise of Dreams
4º) Múm. Summer Make Good
5º) Sigur Ros. Ba Ba Ti Ki Di Do
6º) Banda sonora do livro IMPRIMATUR (a edição port. não editou o CD)
7º) Bjork. Medúlla
8º) Scissor Sisters. Scissor Sisters.
9º) Nouvelle Vague. Nouvelle Vague.
10º) Banda sonora do livro SECRETUM (ainda não editado em português)
11º) O milagre do Candeal.
12º) Adriana Calcanhoto. Adriana Partimpim
13º) Air. Talkie Walkie

Em primeiro lugar, nas preferências do Cura di Sé: The Album Leaf. In a Safe Place


[112] Os melhores livros do ano: ensaio

G. Steiner & A. Spire (2004). Barbárie da ignorância. Lisboa. Fim de Século (o original francês, Barbarie de l'ignorance, é de 2000);
Pat Kane (2004). The Play Ethic. A Manifesto for a Different Way of Living. Londres. Macmillan.

Acompanhou-me, numas merecidas férias na remota aldeia de ALFAFAR, aquele que considero um livro excelente e que me estimulou, entre outras coisas, à criação do blogue CURA DI SÉ. Refiro-me a Alain de Botton (2004). A arte de viajar. Lisboa. Dom Quixote (o original, The Art of Travel, é de 2002).


[111] Os melhores livros do ano: auto-formação e cura di sé

Do ponto de vista profissional foram-me muito úteis os seguintes trabalhos:
F. Baldini (2004). Homework: un'antologia di prescrizioni terapeutiche. Milão. McGraw-Hill;
J. Young & J. Klosko (2004). Reinventa la tua vita. Turim. Raffaello Cortina (o original americano, Reinventing Your Life, é de 1993);
A. Pease & B. Pease (2004). The Definitive Book of Body Language. Londres. Orion Books;
G. P. Quaglino (2004). Autoformazione. Autonomia e responsabilità per la formazione di sé nell'età adulta. Turim. Raffaello Cortina.
D. Servan-Schreiber (2004). CURAR o stress, a ansiedade e a depressão sem emdicamnentos nem psicanálise. Lisboa. Dom Quixote (o original francês, Guérir, é de 2003).
D. Demetrio (2003). Autoanalisi per non pacienti. Inquietudine e scrittura di sé. Turim. Raffaello Cortina.
D. Demetrio (2003). Scritture erranti. L'autobiografia come viaggio di sé nel mondo. Roma. EDUP.

Distinção especial para o diário de auto-cura do psicólogo americano J. Pennebaker (2004). Writing to heal. A Guidade Journal for Recovering from Trauma & Emotion Upheavel. Oakland. New Harbinger Publications.

[110] Os melhores livros do ano: romance


Por me evocarem o amor que sinto pelo meu pai:
Paul Auster (2004). Inventar a solidão. Porto. Edições Asa (o original americano é de 1982); Lars S. Christensen (2004). Herman. Lisboa. Cavalo de Ferro (o original norueguês é de 1988).

Por despertar em mim uma paixão antiga pelos policiais históricos:
Boris Akunin (2003). La Regina d'Inverno. Milão. Frassinelli.

Mas o rótulo «obra extraordinária» vai para o romance dos jornalistas italianos Rita Monaldi & Francesco Sorti intitulado IMPRIMATUR, recentemente publicado em português pela Editorial Presença (Imprimatur - o segredo do papa). A não perder.

[109] Passagem do ano


Vou a uma festa africana. Familiar, mas efusivamente íntima e alargada, como só África sabe ser. Vou estar bem. Virei cedo. Amanhã é outro dia. Será novo ano, mas há continuidade. É primeiro só nos desejos que se formulam. Quando voltar a casa vou ouvir La Tarde es Caramelo de Vicente Amigo: Cerca del rio hay un sendero donde la tarde es caramelo, cerca del rio yo me pierdo, me encontraré cuando me encuentre com tus besos.

[108] maldade de fim de ano: a cultura aproximativa

Ontem, vi alguns momentos da entrevista que Bárbara Guimarães fez a Maria Barroso, creio eu no Sic Mulher (ou seria no Sic Notícias?). De um modo geral, o programa agrada-me, embora, confesso, a entrevistada de ontem não seja das minhas predilectas. Mas o reparo que faço prende-se com outra questão. Já no fim da entrevista, Bárbara pede a Maria Barroso que comente a frase «a beleza salvará o mundo», que teria sido dita (não citada) por Vieira da Silva, pintora por quem a entrevistada nutre grande afeição e apreço (foi esta a premissa que introduziu a pergunta). A entrevistada não pareceu notar a gaffe, ou então, se reparou, nada disse. Eventualmente, por cortesia.
Aqui fica a correcção: Vieira da Silva não podia ter dito aquela frase... a não ser que seja russa, que se chame, também, Dostoevksij e, por fim, que tenha escrito um livro intitulado, em português, O idiota.
Imagine-se isto na boca de certa pessoa cá do burgo! O que não diriam os cônjuges da entrevistada e da entrevistadora!

[107] o sentido de um blogue

29.12.04

Quando começo a questionar-me sobre determinada experiência é sinal de que chegou o momento de a tentar compreender. De perceber, antes de mais, o seu sentido. Só depois avalio os efeitos. Existem muitos blogues. Nascem todos os dias. Alguns já terminaram, outros vão de férias, outros ainda são como pirilampos, intermitentes, ora param ora avançam.
O Cura di Sé iniciou há pouco mais de dois meses. Qual o seu sentido? Blue Everest diz-me que sou silencioso, discreto, intimista. Palavras que considero elogiosas, embora a do intimista me arrepie um pouco. Mas aceito-a. No fundo, também somos um pouco como os outros nos vêem. E está bem assim.
Diz Turoldo, poeta italiano já falecido: scrivere è confessarsi, è donarsi; scrivere è liberarsi. Io non posso non scrivere. É experiência corrente na vida de muitos escritores esta necessidade imperiosa. Escrever é como respirar, terá dito, mesmo, alguém. O Cura di Sé também tem tido esta função, tornando-se mesmo viciante. É um espaço de libertação e de resposta a uma necessidade.
Um blogue é também espaço de encontro: lê-se o dos outros e é-se lido. E as surpresas agradáveis não cessam de ocorrer. É uma mesa em redor da qual se podem partilhar o pão e o vinho - da cultura, das experiências pessoais, da própria visão do mundo -, no enriquecimento recíproco. A frieza de um teclado e a luminosidade opaca de um ecrã transformam-se num instrumento de permuta criativa, crítica e, por que não, afectuosa.
Uma das experiências de escrita que me tem acompanhado ao longo dos anos é a que costuma designar-se por hypomnemata. Antes de dizer o que é, refiro que os vários cadernos em que apliquei esse processo de escrita foram sendo compilados e, seguidamente, destruídos. Foi censurado por fazê-lo e, em certa medida, também me arrependo de o ter feito. Mas o caminho da vida aponta para a frente.
Em 1997, veio-me parar às mãos a tradução portuguesa de um livrinho de Michel Foucaul intitulado O que é um autor? (Lisboa, Vega). Lê-se a certa altura:
Na sua acepção técnica, os hypomnemata podiam ser livros de contabilidade, registos notariais, cadernos pessoais que serviam de agenda. O seu uso como livro de vida, guia de conduta, parece ter-se tornado coisa corrente entre um público cultivado. Neles eram consignadas citações, fragmentos de obras, exemplos e acções de que se tinha sido testemunha ou cujo relato se tinha lido, reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à memória. Constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas; ofereciam-nas assim, qual tesouro acumulado, à releitura e à meditação ulterior...

Sem mais.
Parece-me que é por isto que por aqui ando.

[106] de outros blogues (II): Blue Everest

28.12.04
Um obrigado ao Blue Everest pelos votos de Happy New Year. O CURA di SÉ retribui com afecto, desejando-lhe, por acrescento, um 2005 cheio de boas bloguices.

[105] de outros blogues (I): small blue thing

27.12.04
No hay soles gemelos en Miguelturra, pero aun así tenemos unas puestas de sol increíbles. La llanura no puede detener el frío y el viento me corta la cara cuando salgo con los perros, pero tampoco puede impedir el paso de la luz de un punto a otro del horizonte. Nunca había visto tanta belleza en mi tierra hasta hace un año. La he apreciado tan poco, y ahora la amo tanto... [Cortesia Small Blue Thing]


(Todd Gipstein, Sunset over Atlantic Ocean)

[104] das cores e da saudade


(Edward Hopper, South Carolina Morning)

as persianas de madeira, escura, encerradas e a pose é de espera, altiva, nos braços cruzados e na expressão dos lábios; o vermelho realça as formas fogosas dos seios, as maçãs do rosto; o chapéu, também vermelho, continua a sombra do telhado velando o olhar num jogo de atracção; os sapatos pretos, hesitantes em descer o degrau, parecem mentir a espera, mudando-a em impaciente desejo

cá fora, numa manhã na Carolina do Sul, as espigas alouradas perdem-se até ao azul esbranquiçado do horizonte; mas esqueço-me de tudo

seduz, aquele olhar, sensual, apelativo

quando voltas?

[103] poesia económica


True words aren't eloquent;
eloquent words aren't true.
Wise men don't need to prove their point;
men who need to prove their point aren't wise.

The Master has no possessions.
The more he does for others,
the happier he is.
The more he gives to others,
the wealthier he is.

The Tao nourishes by not forcing.
By not dominating, the Master leads.


(Tao Te Ching - Cortesia Blue Everest)


Um poema deve ser breve, elíptico por vocação, qualquer que seja a sua extensão objectiva ou aparente. Douto inconsciente da Verdichtung e da retracção. [J. Derrida (2003). Che cos'è la poesia. Coimbra. Angelus Novus]

[102] Maremoto

A natureza não nos afaga a cabeça enquanto, refastelados, ainda vivemos no reverbero das festas. A espaços, ela aí está, cínica, imponderável, a remeter-nos para o que somos. Duas coisas nos permitem, também a espaços, «vencê-la»: a vontade indómita de reconstruir o que foi destruído e a fé quase absurda de que a beleza e a solidariedade salvarão o mundo.

[101] feliz natal (II)

23.12.04

o mistério os olhos abertos


(Bosch, Adoração dos magos - Museu do Prado, Madrid)

[100] feliz natal (I)


o
mistério os olhos fechados

(Bosch, Adoração dos magos - Museu do Prado, Madrid)


[99] PRESENTES (IV): a beleza

21.12.04
a beleza salvará o mundo
(Dostoevskij, O idiota)

[98] PRESENTES (III): a qualidade da penumbra


Ao número de prazeres da sua existência, o Mestre Sôséki adicionava, segundo parece, o facto de ir todas as manhãs aliviar-se, insistindo em que se tratava de uma satisfação de ordem essencialmente fisiológica; ora, para apreciar plenamente este prazer, não há local mais adequado que as privadas de estilo japonês onde podemos, abrigados por paredes muito simples, de superfície limpa, contemplar o azul do céu e o verde da folhagem. Correndo o risco de me tornar repetitivo, acrescentarei além do mais que uma determinada qualidade de penumbra, uma limpeza absoluta e um silêncio tal que o canto de um mosquito perturbaria o ouvido, são condições indispensáveis. Sempre que me encontro num sítio assim, agrada-me ouvir cair uma chuva suave e regular.
[Junichiro Tanizaki (1999). Elogia da sombra. Lisboa. Relógio d’água.]

[97] PRESENTES (II): a lentidão

Sabes, Momo, trabalhei muito durante toda a vida, mas fi-lo lentamente, levando as coisas a seu tempo; não me interessava ter grandes lucros, ver desfilar os clientes, isso não. A lentidão é o segredo da felicidade.
[Eric-Emmanuel Scmitt (2003). O senhor Ibrahim e as flores do Corão. Porto. Ambar].

[96] PRESENTES (I): um pente de aço

Os dois param na esquina da Jacobsen; o pai vai para Munkdamsveien, para o estaleiro de construção, e Herman segue em frente. O pai inclina-se sobre Herman e o seu hálito cheira a cigarros e café.
- Um dia vais subir comigo no guindaste – diz.
Herman olha noutra direcção.
- Pois. Consegues ver até à América lá de cima?
- América?! Ainda mais longe! Posso ver tão longe que até vejo as minhas próprias costas!
- Bestial! – diz Herman.
- Não é verdade – diz o pais baixinho. – Consigo ver até Nesodden. Não devemos mentir e inventar coisas, pois não?
- Preferivelmente não.
O pai põe-se direito, procura na algibeira de trás e tira o pente de aço.
- Agora é teu – diz com cerimónia. – Usa-o bem.
Herman recebe com cerimónia o pente, que brilha e tem um peso agradável na mão.
- E tu, como te vais pentear? – pergunta.
- Só meto a cabeça fora do guindaste e o vento é o meu pente – diz o pai, e encaminha-se, enorme, em direcção à Munkdamsveien, desaparecendo atrás de um bando de pombos, que, de repente, levantam voo.
[Lars S. Christensen (2004). Herman. Lisboa. Cavalo de Ferro]

[95] Início


(Dickens, Snow trees)



De olhos fechados
escutamos
a música interior,
perdidos em perguntas e pensamentos:

o nosso espírito corre
pelos oitos cantos do universo,
a mente voa a grandíssima distância;

só então a voz interior
pode tornar-se clara
e os objectos numinosos.

Transbordamos
a essência das palavras,
saboreando a sua doçura.

É como ir à deriva
num lago celestial
ou mergulhar nas profundezas marinhas.

Trazemos pérolas vivas,
como peixes agarrados ao anzol
que estrebucham vindos do abismo.

Palavras claras,
como pássaros abatidos por flechas
arremessadas de nuvens passageiras.

Metemos palavras e imagens
entre as que não foram recolhidas
pelas gerações passadas.

Há mil anos
as nossas melodias
não eram tocadas.

Desabrocham as flores da manhã,
em breve, os rebentos da noite vão fechar-se.
Passado e presente misturam-se:
a eternidade
num único pestanejar.

(LU JU, A arte da escrita)

[94] O despertar do inverno



O campo refulge branco e frio.
O céu é solitário e imenso.
Tordos volteiam por cima do charco
e caçadores descem do bosque.

Silêncio mora em cumes negros.
Um clarão de lareira transborda das cabanas.
Por vezes, bastante longe, tilinta um trenó
e lenta ergue-se a lua.

Uma fera dessangra muda à beira do desfiladeiro
e os corvos chafurdam em charcos de sangue.
O canavial treme dourado e alto.
Gelo, fumo, um passo no boscagem vazia.

(George Trakl, IM WINTER)

[93] preparar-se para o natal (III)

18.12.04
RECITAR O MANTRA
«to apprehend the point of intersection of the timeless with time, is na occupation for the saint» (t.s. eliot, the dry salvages, v, in the four quartets)

ESCUTAR OS SEGUINTES CÂNTICOS
1. Window do álbum In a Safe Place dos Album Leaf, durante a adoração dos pastores;
2. The Creek do álbum Visible World do Ian Garbarek, no meio da caravana dos Magos;
3. The Triumph of Heart do álbum Medula da Bjork, a sós com a Sagrada Família;
4. Andamento 5 (lento) da Sinfonia nº4 do Joly Braga Santos, na festa, fora da gruta.

[92] preparar-se para o natal (II)



A curiosidade dos homens investiga o passado e o futuro e agarra-se a essa dimensão. Mas apreender o ponto de intersecção do intemporal com o tempo, é ocupação de santo - nem ocupação tão-pouco, mas algo dado e recebido, na morte de toda uma vida de amor, ardor e abnegação e entrega de si mesmo. Para a maior parte de nós, apenas há o momento isolado, o momento dentro e fora do tempo, a crise de distracção, perdida num raio de sol, o tomilho bravio oculto, ou os relâmpagos de inverno ou a cascata, ou a música tão profundamente ouvida que nem é ouvida, mas somos nós a música enquanto dura a música. Isto são apenas indício e suposições, indícios seguidos de suposições; e o resto é oração, observância, disciplina, pensamneto e acção. O indício semi-adivinhado, o dom semi-compreendido, é a Encarnação. Aqui, a impossível união das esferas é real. (adaptado de t.s. eliot, the dry salvages, v, in the four quartets)

(mary heebner, first moon passage)

[92] preparar-se para o natal (I)

não pode ser vivido, ao natal sobrevive-se, resta esperar que passe, e nos deixe inteiros


(mary heebner)

[91] O óbvio que gera gargalhada

Primeira página do PÚBLICO de hoje:
«Clubes de futebol notificados para pagar dívidas de 21 milhões ao fisco». Gilberto Madaíl, presidente da FPF, diz que esta decisão do Bagão Feliz gera um «problema complexo».

Pois. Havia de gerar um quê? Facilidades de pagamento?!

[90] ... a coisa torna-se séria?


1000 páginas vistas. 90 postas. Desde Outubro na linha, apesar da instalação progressiva. Não, não requer lançamento de foguetes. Mas quer isto dizer que a coisa se está a tornar séria? Viciante? E que o Cura di Sé, ao invés de curar, faz adoecer de paixão pelo escrevinhar? Enquanto alguns comemoram 1 ano de existência e outros 1000000 de páginas vistas; enquanto uns são citados nos meios de comunicação e outros dão origem a livros... o Cura di Sé, não escondendo algum ciúme, calcorreia trilhos de anonimato... e está bem assim! O próximo objectivo é chegar às 2000 page views (em meados de Janeiro de 2005) e às 200 postas (talvez em meados de Fevereiro de 2005). Agora, mais a sério: isto é um gozo fenomenal!

[89] movimento finito (V)

17.12.04
pai e quando morreres como será poderei absolver a vida por nos ter atormentado e a morte por nos rasgar vou recordar-te a dizeres o meu nome aos sábados de manhã não me esquecerei embora não saiba se te consegui amar

(emile renouf, the helping hand )


[88] movimento finito (IV)

não sei o que são estes versos hesito, até, em dizê-los meus
ora parecem amarras, ora chacais às vezes um seio túrgido
e eu mãe a pari-los ao raiar da palavra


volker diekamp

[87] movimento finito (III)


cicia e lateja uma chuvinha miúda sobre o tejadilho do carro a teologia diz que Ele não tem cheiro não se vê nem saboreia não se ouve nem se toca o que é então este gotejar de fogo nas olaias roxas que deslizam em carreiros até ao mar ou o acre suor dos velhos que mais ninguém quer

[86] movimento finito (II)

pela manhã as nossas bocas verteram nevoeiro uma na outra no verão afogámos as acácias num poço frio e fundo e deixámos a terra da meninice

(sara saudkova, the kiss)


[85] movimento finito (I)

as palavras movem-se [...] depois de ditas, alcançam o silêncio
(t.s. eliot, four quartets)


(mel curtis, sound of silence)



[84] ... algo mudará

1
Vencido do catolicismo, sem plural
que me conforte ou confronte,
sem o ombro gratuito, conveniente,
de uma geração que me console.

Vencido eu porque ele primeiro,
caduco para séculos sem tragédia
ou sem a dolorosa comédia
da sua teoria que nos rasga [...]

[Pedro Mexia (2004). Vida Oculta, Relógio d’Água, Lisboa, 43]

2
«Oh il vostro cristianesimo» gli dico.
«O crepato trabocca in tutto l’altro, sia pure il deserto,
oppure è un fiumiccello da nulla
che stagna fra gli orti sotto casa e li ammorba»

[Mario Luzi (1963). Nel magma]

[83] Veludo subterrâneo

16.12.04


Que se saiba que me sinto deliciosamente afortunado por ter nascido no ano em que a banana se descascou para o grande público. Que sons bizarros, que doçura... Como é que conseguiam aquele sonoridade? Senhoras e senhoras os Velvet Underground. De seguida, uma das muitas pérolas: Femme Fatale.

Here she comes
you'd better watch your step
She's going to break your heart in two
it's true
It's not hard to realize
just look into her false colored eyes
She'll build you up to just put you down
what a clown

You're written in her book
you're number 37, have a look
She's going to smile to make you frown
what a clown

Little boy, she's from the street
before you start you're already beat
She's going to play you for a fool
yes it's true

'Cause everybody knows
(she's a femme fatale)
the things she does to please
(she's a femme fatale)
She's just a little tease
(she's a femme fatale)
See the way she walks
hear the way she talks

[82] A doença do Cura di Sé

Doctor Unheimlich has diagnosed me with
Cura di séitis
Cause:natural sign of ageing
Symptoms:excessive absenteeism, frequent American accent, black vomit, frequent abdominal pain
Cure:exercise
Enter your name, for your own diagnosis:

Via Bomba inteligente

[81] Uma noite de Inverno

14.12.04

Judy Mandolf, Bread and Wine


Quando a neve cai à janela,
longamente dobra o sino do entardecer.
Para muitos a mesa está posta
e a casa arrumada.

Alguns, no seu errar,
chegam à porta por caminhos obscuros.
Abrolha, áurea, a árvore das graças
da fresca linfa da terra.

Silencioso o viandante entra.
A dor petrificou o umbral.
Aí resplandece em pura luz,
em cima da mesa, pão e vinho.
(Georg Trakl)

[80] O homem que contava degraus e comboios

12.12.04

Conheci um homem que sabia o horário dos comboios de cor e salteado, porque a única coisa que lhe dava alegria e satisfação era o caminho de ferro, e ele passava todo o seu tempo na estação, a olhar para as composições que chegavam e para as que partiam [...]. Mas ele, pessoalmente, nunca tinha entrado num comboio.

Mas quando, finalmente, acabou de contar todos os degraus da sua cidade, dirigiu-se à estação, foi à bilheteira, comprou um bilhete e, pela primeira vez na sua vida, entrou num comboio. Viajou para outra cidade e, também aí, se pôs a contar quantos degraus a cidade tinha. E depois, viajou pelo mundo inteiro para contar os degraus que contém. E assim, ficou a saber aquilo que mais ninguém sabe e que nenhum empregado pode ler num livro.

(Peter Bichsel, trecho do conto Homem com memória)

[79] O mito do eterno retorno ou dos tempos que se aproximam

L'ORGUE DE BARBARIE
Moi je joue du piano
disait l'un
moi je joue du violon
disait l'autre
moi de la harpe moi du banjo
moi du violoncelle
moi du biniou... moi de la flûte
et moi de la crécelle.
Et les uns et les autres parlaient parlaient
parlaient de ce qu'ils jouaient.
On n'entendait pas la musique
tout le monde parlait
parlait parlait
personne ne jouait
mais dans un coin un homme se taisait:
«Et de quel instrument joues-vous Monsieur
qui vos taisez et qui ne dites rien?»
lui demandèrent les musiciens.
«Moi je joue de l'orgue de Barbarie
et je joue du couteau aussi»
dit l'homme qui jusqu'ici
n'avait absolument rien dit
et puis il s'avança le couteau à la main
et il tua tous les musiciens
et il joua de l'orgue de Barbarie
et sa musique était si vraie
et si vivante et si jolie
que la petitte fille du maître de la maison
sortit de dessous le piano
où elle était couchée endormie par ennui
et elle dit:
«Moi je jouais au cerceau
à la balle au chasseur
je jouais à la marelle
je jouais avec un seau
je jouais avec une pelle
je jouais au papa et à la maman
je jouais à chat perché
je jouais avec mes poupées
je jouais avec un ombrelle
je jouais avec mon petit frère
avec ma petit souer
je jouais au gendarme
et au vouler
mais c'est fini fini fini
je veux jouer à l'assassin
je veux jouer de l'orgue de Barbarie.»
Et l'homme prit la petit fille par la main
et ils s'en allèrent dans le villes
dans les maisons dans les jardins
et puis ils tuèrent le plus de monde possible
après quoi il se marièrent
et ils eurent beaucoup d'enfants.
Mais
l'aîne apprit le piano
le second le violon
le troisième la harpe
le quatrième la crécelle
le cinquième le violoncelle
et puis ils se mirent à parler parler
parler parler parler
on n'entendit plus la musique
et tout fut à recommencer.

(Jacques Prevért)

[78] Ecco com'è che va il mondo!

11.12.04

Fernando Botero, La Cama


Era a puta mais gorda que alguma vez vira, a mulher mais gorda que alguma vez contemplara. Trazia um vestido de seda furta-cores, um colar de pérolas pequenas ao pescoço e um leque de avestruz. Tinhas mãos delicadas.
Um homem disse-lhe: «montanha nojenta de banhas». Ela riu-se, abanou a cabeça como a dizer que sim, ó meu Jesus, é claro que sim. Fazer amor contigo não deve ser cómodo, és gorda por três... mas não, dizem-me que tens um regaço maravilhoso, que és mais linda do que Marylin ou Evelyn, já não me lembro. Ela riu-se e abanou a cabeça, ciciou qualquer coisa, como que a dizer que sim.
Estais a ver como vai o mundo? Pois é assim que o mundo vai!
A minha alma não destila mel e doçuras, happyness and truth, necessidades naturais. Mas tenho uma filha que, nos intervalos, me acaricia os cabelos grisalhos. E os anos tornam-se doces ao seu toque, beija-me nas faces cruéis e entrança-me jogos pacientes de ramos com as suas pupilas de gata.
Terá sido em Abril ou em Maio? Por acaso encontrei-a. Ri-me, abanei a cabeça e ciciei qualquer coisa como que a dizer que sim.
Estais a ver como vai o mundo? Pois é assim que o mundo vai!

(Franco Battiato, L'imboscata, texto de Manlio Sgalambro, Ecco com'é che va il mondo, traduzido por Cura di Sé)

[77] Dias estranhos... vivemos dias estranhos

HAG, Storm force


Numa combinação algo forçada, os Doors e Franco Battiato (texto de Manlio Sgalambro) unem-se, com duas décadas de distância entre si, na mesma apreciação destes dias... estranhos.

Strange days have found us
Strange days have tracked us down
They're going to destroy
Our casual joys
We shall go on playing
Or find a new town
Yeah!
Strange eyes fill strange rooms
Voices will signal their tired end
The hostess is grinning
Her guests sleep from sinning
Hear me talk of sin
And you know this is it
Yeah!
Strange days have found us
And through their strange hours
We linger alone
Bodies confused
Memories misused
As we run from the day
To a strange night of stone

(The Doors, Strange Days)

**********

In nineteen fortyfive I came to this planet
Ascoltavo ieri sera un cantante uno dei tanti
e avevo gli occhi gonfi di stupore
I've seen many things in this part of the world
nel sentire: "il cielo azzurro appare limpido e regale"
let me tell you something
(il cielo a volte, invece, ha qualche cosa d'infernale).

Strani giorni viviamo strani giorni.

Cantava:
life can be short or long
sento un rumore di swing provenire dal Neolitico,
it depends
dall'Olocene.
where you go at night
Sento il suono di un violino
alone and walking alone through the grey sunday streets
e mi circondano l'alba
looking for someone
e il mattino.
the place was clean well lit
Chissà com'erano allora
I went in and I said I suppose I said
il Rio delle Amazzoni
whisky please
ed Alessandria la grande
the place was clean well lit
e le preghiere e l'amore?
two men in a corner were waiting
chissà com'era il colore?

I saw it from their hands
you look at the hands
not at the face
if you want to stay out of trouble

Mi lambivano suoni che coprirono rabbie e vendette
di uomini con clave
ma anche battaglie e massacri di uomini civili.
looking for someone
L'uomo neozoico
where you go at night
dell'Era Quaternaria.
strange days I lived through strange days
Nella voce di un cantante
si rispecchia il sole
ogni amata ogni amante.

Strani giorni viviamo strani giorni.

I've fallen into reverie
I dreamed a vague outline
the whisky flowed
sending me into the past
action roll the cameras
here comes a lighting tour of my life
the two in the corner didn't say a word

(Manlio Sgalambro, Strani giorni, in Franco Battiato, L'imboscata)

[76] Dançar... in the Cosmic Ballet

10.12.04

A propósito da posta sobre o fundamentalismo anti-religioso no Blasfémias, reproponho (acrescentando foto) uma das primeiras postas do Cura di Sé ([16] Dançar...in the Cosmic Ballet).


Num fundo brilhante, como o clarão de um amanhecer, retalha-se a silhueta de um homem de braços abertos. Só se vê do tronco para cima e, por isso, não se percebe se dança ou se procura um equilíbrio. Ou é bailarino ou funâmbulo. Ou procura um equilíbrio suspenso no abismo ou desempenha a sua parte na dança da vida. O que vai dar ao mesmo.

Diz John D. Caputo (2001, On religion):

What do I love when I love my God? To a Buddhist, or to a Native American, or to a contemporary eco-feminist, the cosmos is not a blind and stupid rage, as Nietszche thought, but a friend, our element and matrix, the beggining and the end, the gentle rocking of a great cosmic womb, a friendly flux from which we take our origin and to which we return, like the steady beat of ten thousand waves in the sea. Then the love of God means to learn how to dance or swim, to learn how to join in the cosmic play, to move with its rhythms and to understand what we are each of us of no special import other than to play our party in the cosmic ballet.

[75] Narrar a cidade (IV): o combóio 2



Mas já em meados do século XX o sonho desaparecera. É suficiente olhar para os carris que se adentram pelo pórtico para perceber que o aparelho do progresso se transforma em instrumento de opressão, de extermínio. Uma mancha que a memória não consegue apagar. Hoje, as ervas rasteiras vencem o ferro da linha, quase num grito de vitória em que vida tem sempre a última palavra. Mas os carris lá estão... opressivos... à espera de quem os reactive, a dizer que o totalitarismo anda sempre à espreita das suas vítimas.

[74] Narrar a cidade(III): o combóio 1



No início do século XX foi um objecto formidável. Nele, os humanos projectaram a esperança do desenvolvimento. Era a encarnação do mito do progresso: o fumo, o rugido, o galgar distâncias infindas, a velocidade estonteante se comparada com as bestas do almocreve ou os cavalos das diligências.

[73] Place of Pilgrimage


Joan Miró

Life is a hard and agonizing flight
of migratory birds
to regions where you are alone.
And whence there's no return.
And all that you have left behind,
the pain, the sorrows, all your disappointments
seem easier to bear
than is this loneliness,
where there is no consolation
to bring a little confort to
your tear-stained soul.

Jaroslav Seifert


(Cortesia BLUE EVEREST)


[72] A fotocópia: Guterres vs. «Guterres»

9.12.04
É sabido que os estudantes universitários são grandes consumidores da fotocópia: ele é reprodução de livros, reprografia de sebentas, xerox de apontamentos... Mas daí a entronizá-la institucionalmente ia um grande passo. Até ontem! Com efeito, a Associação de estudantes da Academia Conimbricense chegou ao cúmulo de eleger para seu Presidente uma fotocópia do engenheiro Guterres: o mesmo corte de cabelo (ah!, aquela franja irrequieta!), trejeitos idênticos, lábia afim... De resto, o que um tem por nome o outro tem por alcunha. Como se já não bastasse ter presidentes de associações de estudantes que arremedam, na prosápia, os políticos graúdos! Que fazer? Vivemos num país de emulações. Ou será de fotocópias?! Será esta a safra nova a que Soares se referia?

[71] Prémio Trilussa 2004 (ver posta 58): Eduardo Prado Coelho em «A língua, as culturas»

Comecei o dia bem cedo. Às 6.45 da manhã já estava na Estação do Oriente a bebericar o habitual café e a ler as primeiras letras do dia. A vida é dura, poderia pensar alguém. Mas para me aliviar das penas de existir, veio em meu auxílio «O fio do horizonte», coluna que Eduardo Prado Coelho assina no Público. A respeito do colóquio internacional sobre a língua portuguesa, lia-se a certa altura (repare-se na circularidade linguística e na repetição enfática de alguns termos):

[...] As múltiplas configurações linguísticas [...] não podem deixar de ter consequências na imagem e na realidade do português, na medida em que todo o contacto com o outro altera o mesmo, que deixa de ser o mesmo, para passar a identificar-se com o outro. Só que o outro está já a identificar-se com o mesmo e deste modo o mesmo vai já a caminho de ser outro. O resultado final nunca chega a ser final, porque os dois se vão aproximando em função de um terceiro que é a incógnita deste processo.
Foi ainda a muito decidida proclamação da importância fundamental do ensino pré-escolar. É nestas idades que tudo se começa a formar e que estruturas, hábitos, rotinas se vão instalando no sujeito, de forma a darem ao sujeito a sua capacidade de ser sujeito.

Agradeço a EPC por me ter conseguido arrancar uma gargalhada tão cedo pela madrugada. E se é verdade que os intelectuais também têm direito a dias duros e menos acertados, por outro lado, nunca pensei que uma página de apontamentos tirados durante o referido colóquio internacional - que EPC, aliás, «comissariou» (do verbo «comissariar») -, produzissem efeitos tão benéficos sobre o estado de espírito. Mas não foi Martin Heiddegger (1987, Carta sobre o Humanismo, Lisboa, Guimarães Editores, 33) quem disse que «no pensar, o ser tem acesso à linguagem», que «a linguagem é a casa do ser», que «nesta habitação do ser mora o homem, e que «os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação»? E tão bem que EPC guarda esta habitação!

[70] Narrar a cidade (II): a estação

8.12.04
Alle cinque cominciano a entrare i primi treni in stazione, e a buttar giù battaglioni di gente grigia, com gli occhi gonfi, in marcia spalla a spalla verso il tram, que li scarica all'altro capo della città dove sono le fabbriche. Per due, tre minuti, sotto le volte della sala biglietti sfilano a passi lenti, poi tutto ritorna vuoto e silenzioso, fino al prossimo treno, al prossimo sbarco di gente assonnata e frettolosa. Non puoi fermarne uno, chiedergli come si chiama, che cosa fa, se è vero che lima la ghisa con le mani [...]. Li guardi e sono già sfilati via senza voltare gli occhi attorno. [Luciano Binciardi (1962). La vita agra, Rizzoli, Milão].

[69] Narrar a cidade (I): a chegada

Edward Hooper, Approaching a New City


Não se vê a estação. Apenas um túnel escuro sob um viaduto, uma parede cinzenta, prédios uniformes, em que apenas um está colorido, e duas linhas de combóio. Nada mais. Nem estação nem combóio. O que nos traz uma nova cidade? Que novidades nos concede? Sabe-se apenas que há um caminho que rasga o cinzento anónimo e padronizado da cidade. É inevitável meter por ele adentro. Que realidades nos desvelará?


Na minha infância e adolescência houve a estação de caminho de ferro de Vilar Formoso, durante o período do Natal: de dia atravessávamos a linha para ir entregar o leite aos fregueses da outra «margem» ou quando íamos «a salto» a Fuentes de Onõro; de noite despertávamos com o uivo do Sud Expresso e o roncar da auto-motora. A casa da avó era escura e fria. Ainda hoje me lembro das noites de inverno: debaixo de pesadas mantas «de papa» e de olhos escancarados a rasgar o breu, ficava absorto a ouvir aquele rufar de motor entrecortado pelo bramido de um apito prolongado.

[68] As festas

Vivemos tempos incompreensíveis. Tempo de paternalismo silencioso e tempo do culto da personalidade. A direita esbraceja aflita e magoada e responde com sarcasmo e agressividade. A esquerda oscila entre o silêncio institucional e a ostentação narcísica dos méritos do passado. À espreita.
A celebração, e as suas formas, em nada fica atrás de outras festas políticas já vistas... e tem direito a documentário biográfico e a cântico inicial evocativo das glórias pretéritas. Mas o pretexto da festa também parece ser outro: não só um jantar de aniversário, mas também um baile de debutantes, que recebem do patriarca a chancela de que há que dar confiança às safras mais novas...
Como se não bastasse, vislumbram-se Freitas, Guterres, Otelo, Sócrates, Pinto Balsemão... É também uma reunião ecuménica!
Na cabeça martelam-me as palavras de G. Steiner: «há na reconciliação, tal como na vinda do Messias, um nada da sombra de um certo tédio...».

[67] ... outra viagem

7.12.04
E se parares,
convencido de que alguém se vai lembrar de ti,
não te esqueças: à tua frente,
outra viagem te espera,
outra cidade quer que a cantes.

[66] A LER

6.12.04
A laicidade, é o sexo - editorial da revista PSYCHOLOGIES do mês de Dezembro. Nele, Jean-Louis Servan-Schreiber, propõe a questão da sexualidade como critério que permite distinguir entre a religiosidade amadurecida e a religiosidade fundamentalista. Diz ele que

A linha de separação entre quem faz uma busca pessoal e aqueles que querem impor a própria perspectiva ao próximo e aos concidadãos é fácil de traçar: passa pela sexualidade. Todos os fundamentalismos, quer se baseiem na Bíblia ou no Corão, têm como neurose obsessiva comum a regulamentação da vida sexual de todos: codificação das práticas íntimas, anátema contra a homossexualidade, controlo dos úteros, obsessão pela pureza...
Pelo contrário, aqueles que encetaram uma busca espiritual, praticam todas as asceses que lhes convém, mas não se dão ao direito de a imporem aos outros.
Nos começos do século XX, a laicidade era o anti-clericalismo. No começo do século XXI, a laicidade é o reconhecimento da autonomia sexual de cada um.

********
Querido Deus: e-mails enviado para o Céu – trabalho apresentado na mesma revista. Ou como «escrever» a Deus utilizando as novas tecnologias informáticas. Os títulos de cada e-mail são sumarentos:

Obrigada, por me teres feitor mulher - Nawal (32 anos, marroquina), responsável pela comunicação interna de um banco.
Chamo-me Martine, nua, na Tua presença - Martine (44 anos, francesa), assistente de direcção.
O que se passa conTigo? - Paule (31 anos, canadiana), operadora de televisão.
Eu não acredito na Vossa existência - Evelyne (49 anos, francesa), pintora.
Durante muito tempo, detestei-te - Jacques (36 anos, francês), pintor.
Toda a minha vida naveguei em busca de Deus – Christophe (42 anos, francês), piloto de avião.

[65] O encarniçamento do cirurgião


- E por que razão ainda não podemos ficar totalmente tranquilos? - perguntei, percebendo que o médico hesitava em comunicar-me as más notícias.
- O teu patrão é vítima de um evidente excesso de ar no ventre. É de temperamento bilioso, e hoje está muito calor: o que nos deve induzir à prudência. Temos de intervir com uma lavagem, como de resto já receava ter de fazer.
Acrescentou que, a partir desse momento, visto o tipo de curas e tratamentos depurativos a que iria submeter Pellegrino, este necessitava de ficar sozinho no quarto. Resolvemos, por isso, que eu mudaria o meu leito para o quartinho contíguo [...].

Enquanto me aprestava a fazer a breve mudança, Cristofano tirou de uma bolsa de couro uma bomba de fole do tamanho do meu antebraço. Na extremidade da bomba inseriu um tubo a que, por sua vez, se ligava na perpendicular um outro tubinho comprido e afuselado que terminava com um buraquinho. Experimentou o mecanismo por duas vezes para se certificar de que o fole, devidamente accionado, insuflava ar na conduta e o expelia, por fim, através do buraquinho terminal [...].
- Aqui está - disse satisfeito Cristofano no fim do ensaio, ordenando-me seguidamente que fosse buscar água, azeite e um pouco de mel.
Assim que regressei com os ingredientes, fiquei surpreendido ao encontrar o médico atarefado com o corpo seminu de Pellegrino.
- Não colabora, ajuda-me a mantê-lo imóvel.

Deste modo, tive de ajudar o médico a desnudar as redondezas traseiras do meu patrão, que acolheu tal iniciativa de má vontade. Durante o quase braço a braço que se seguiu (e, na realidade, mais devido à falta de cooperação por parte de Pellegrino do que a verdadeira resistência), tive ocasião de perguntar a Cristofano qual a finalidade dos nossos esforços.
- É simples - respondeu-me -, quero fazer-lhe expelir uma boa quantidade de ar inútil.
E explicou-me que o modelo que tinha nas mãos, graças aos tubos dispostos em ângulo recto, permitia praticar sozinho a insuflação, salvaguardando portanto o próprio pudor. Pellegrino, porém, não parecia capaz de a aplicar por mão própria e, nesse caso, tínhamos de ser nós a praticar-lha.
- Mas vai ajudá-lo a sentir-se melhor?
Cristofano disse-me, quase surpreendido com a pergunta, que o clister (uma vez que era assim que alguns costumavam indicar tal tratamento) é sempre adjuvante e jamais de prejuízo: como diz Redi, evacua os humores do corpo com suma placidez sem debilitar as vísceras, e sem as fazer envelhecer como fazem os medicamentos tomados pela boca.
Enquanto vertia o preparado no fole, Cristofano louvou não apenas as lavagens purgantes, mas também as lavagens alterantes, anódinas, litotrópsias, carminativas, sarcóticas, epulóticas, abstergentes e até adstringentes. Os ingredientes benignos eram infindos: podiam fazer-se infusões de flores, folhas, frutos ou sementes de ervas, mas também com os pés e a cabeça do capão, com intestinos de animais e caldo de galos velhos derreados à força de azorrague.
- Muito interessante - disse eu, procurando agradar a Cristofano, embora dissimulasse a repugnância.
- A propósito - acrescentou o médico no final de tão úteis disquisições -, nos próximos dias o convalescente deverá seguir uma dieta à base de caldos, canjas e águas fervidas, pois tem de recuperar de tanta extenuação. Por isso, hoje, podes dar-lhe meia xícara de chocolate, uma canja de galinha e biscoitos embebidos em vinho. Amanhã uma xícara de café, uma sopa de borragem e seis pares de colhões de frango.
Depois de ter aplicado em Pellegrino algumas vigorosas sopradas com o fole, Cristofano deixou-o seminu e encarregou-me de o vigiar até que o benéfico efeito corporal da lavagem se verificasse. Coisa que, com efeito, aconteceu quase de imediato, e com uma tal violência, que compreendi plenamente por que razão o médico me tinha feito transladar as minhas coisas para o quartinho do lado.


(Monaldi & Sorti, IMPRIMATUR - O segredo do papa, Ed. Presença. Lisboa, 2004)

Rembrandt, A lição de anatomia

[64] A fartança dos esfomeados

Lavaduras de esterco: assim que cheguei à cozinha lembrei-me que com tais palavras Pompeo Dulcibeni tinha catalogado os meus esforços culinários condimentados com canela de excelente qualidade. Decidi remediar a situação. Desci à copa.

Numa ampla anfractuosidade, escondida por detrás de uma teoria de potes com vinho, azeite e toda a espécie de legumes e sementes secas, fruta cristalizada, verduras em boiões e sacos de macarrões, de gnochetti, de lasagna e filhoses, descobri grande variedade de carnes salgadas, fumadas, secas e enfrascadas a repousar debaixo de amplas telas de juta ou ao fresco no meio da neve. Aí, o senhor Pellegrino pusera a conservar, qual amante cioso, línguas em calda e leitões, e depois, pedaços de vários animais: moelas de veado e de cordeiro; tripa de vitela; pés, rins e miolos de porco-espim; tetas de vaca e de cabra; línguas de castrado e javali; perna de corsa e de gamo, fígado, patas, pescoço e goelas de urso; alcatra, costeletas e lombo de cabrito-montês.
E descobri também lebres, galos do monte, peruas da Índia, frangos silvestres, pintos, rolas, pombas selvagens, faisões e faisoas, perdizes, perdigotos e perdigões, galinholas, pavões, pavoas e pavoncinos, patos e galinholas pretas, patas, gansos, narcejas, codornizes, rolas, malvises, francolins, verdelhões, abetouras, andorinhas, pardalejas e pardais, papa-figos do Chipre e da Cândia.

De coração a palpitar, imaginei como os prepararia o meu pobre patrão: cozidos, assados, ensopados, em calda, no espeto, fritos, em pasta com ou sem folhado, na brasa, na sopa, aos bocados, tostados, com molho, com vinagres, com frutos e trufas.

Atraído pelo forte cheiro a fumados e algas secas, fui avante com a minha inspecção; e debaixo de outra neve prensada e outras telas de juta, como esperava, fechados em barriletes cheios de sal ou pendurados em pequenos magotes ou ainda enfileirados, encontrei: espadartes, peixes-espada, linguados, tainhas, chernes, caracóis, corvinas, pargos, camarões, gambas, lagostins, caranguejos, sáveis, lampreias, petingas, solhas, lúcios, marmotas, ruivos, pescadas, bacalhaus, lapas, filetes de peixe-espada e de ruivo, peixe-galo, rodovalho, raias, sardinhas, garoupas, carapaus, esturjões, tartarugas, mexilhões e tencas.

Até a esse momento, só conhecia de toda aquela bênção de Deus, os alimentos frescos que eram entregues pelos fornecedores de todas as vezes que lhes escancarava as portas da entrada de serviço. A maior parte das provisões, pelo contrário, apenas a tinha entrevisto de fugida quando (infelizmente, poucas vezes) o meu patrão me encarregava de ir buscar víveres à copa e, depois, quando tive de acompanhar Cristofano.

Escolhi um barrilete com tetas de vaca e regressei à cozinha. Sacudi-lhes o sal, liguei-as e cozia-as todas. Depois disso, cortei-as em fatias finas, que enfarinhei, dourei e fritei com molho a meu prazer. A outras fatias, estufei-as com ervas aromáticas e especiarias, um pouco de caldo gordo, e acompanhei-as com ovos. Outras ainda, levei-as ao forno com vinho branco, bagos de agraço e sumo de limão, alguns frutos frescos, uva passa, pinhões e fatias de presunto. Outras mais, reduzi-as em bocados, empastei-as com vinho fervido e fechei-as dentro de massa folhada com especiarias, presunto e outros salgados, e acrescentei miolo de pão, caldo de ovos batidos e açúcar. As restantes fi-las um pouco gordurosas com fatias de toucinho de presunto e cravinhos, envolvidas numa rede e enfiadas num espeto.

Quando acabei estava exausto. Cristofano, chegado à cozinha no fim do meu longo trabalho, encontrou-me meio desmaiado, sentado no chão num banho de suor a um canto da chaminé. Examinou e cheirou os pratos enfileirados em cima da grande mesa da cozinha. Dirigiu-me um olhar paternal e satisfeito.

- Rapaz, da distribuição ocupo-me eu. Tu podes ir descansar.

Saciado com as repetidas e generosas degustações que tinha concedido a mim mesmo durante a preparação, subi as escadas até às águas-furtadas, mas não entrei no quarto. Sentado nos degraus e sem ser visto, usufruí do meu merecido sucesso: durante a consumação da refeição da noite, durante uma boa meia-hora, os corredores da estalagem do Donzel ressoaram de tinidos, gemidos e estalidos de satisfação. Um coro de estômagos que tossiam ruidosamente o ar acumulado, por fim, decretou que se podia levantar a mesa. Quase chorei com a desforra que tinha conseguido obter.

(Monaldi &Sorti. IMPRIMATUR - O segredo do papa, Ed. Presença, Lisboa, 2004.

Dinner Party, painted by a Pacific Rim Artist

[63] Desabafos dos traumatizados

1.12.04
Primeiro desabafo. Ontem, telefonou-me o AJ para que ligasse o televisor na Sic Notícias: o PM relatava da decisão do PR. Assim fiz e assim vi e, ainda de TM na mão, ouvi o desabafo do AJ: «Que nojo! Só me apetece emigrar! Esta malta não sabe ao que anda nem o que quer!».

Segundo desabafo. Mais tarde, talvez já hoje de manhã, num dos canais, vi o representante dos correspondentes estrangeiros em Portugal - um senhor italiano de que, infelizmente, não lembro o nome – a responder à habitual pergunta que os portugueses adoram fazer a um estrangeiro: «Mas lá fora, nos outros países, como é que se vê esta crise da política portuguesa?» (que é uma variante da pergunta mais simples: «O que é que acha de Portugal?)». A resposta foi que, lá fora, não se via a crise da política portuguesa!

Juntando o primeiro episódio ao segundo, já se vê no que dá, não é? Ir para bem longe, onde não se fale desta gente, onde não se vejam estas caras impunes e satisfeitas de si próprias, onde não se ouçam estas vozes que se insinuam, que enganam, que tentam convencer...

Há uma palavra inglesa, resilience, que indica a capacidade que um determinado material deve possuir para absorver um embate sem se quebrar. Na sua aplicação psicológica, a palavra – aportuguesada – resiliência quer exprimir a capacidade de enfrentar os conflitos, os traumas, a adversidade transformando-as em ocasião de crescimento humano. Ou seja, aguentar sem quebrar! E os psicólogos – «esse irmãos mais velhos de um jardim zoológico de animais domésticos» (DBC Pierre, Vernon Little. O bode expiatório), dizem que o primeiro passo da resiliência é o sentido de humor!

E eu, como preservo a minha saúde psicológica, telefonei ao AJ e resolvemos ultrapassar os nossos traumas dando uma valente gargalhada à custa da política nacional e dos representantes do Estado, essas bestas impunes que não nos deixam em paz.
E é este o convite que deixo aos eleitores portugueses: nas próximas eleições, quando inserirem o voto na urna, soltem uma valente gargalhada de homenagem aos nossos representantes... estarão a cumprir o dever e a usufruir do direito e, ao mesmo tempo, a preservar a vossa saúde mental.

[62] Uma nova aurora

Ancora un'alba sul mondo:
altra luce, un giorno
mai vissuto da nessuno,
ancora qualcuno è nato:
con occhi e mani,
e sorride.
(d.m. turoldo)


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