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[65] O encarniçamento do cirurgião


- E por que razão ainda não podemos ficar totalmente tranquilos? - perguntei, percebendo que o médico hesitava em comunicar-me as más notícias.
- O teu patrão é vítima de um evidente excesso de ar no ventre. É de temperamento bilioso, e hoje está muito calor: o que nos deve induzir à prudência. Temos de intervir com uma lavagem, como de resto já receava ter de fazer.
Acrescentou que, a partir desse momento, visto o tipo de curas e tratamentos depurativos a que iria submeter Pellegrino, este necessitava de ficar sozinho no quarto. Resolvemos, por isso, que eu mudaria o meu leito para o quartinho contíguo [...].

Enquanto me aprestava a fazer a breve mudança, Cristofano tirou de uma bolsa de couro uma bomba de fole do tamanho do meu antebraço. Na extremidade da bomba inseriu um tubo a que, por sua vez, se ligava na perpendicular um outro tubinho comprido e afuselado que terminava com um buraquinho. Experimentou o mecanismo por duas vezes para se certificar de que o fole, devidamente accionado, insuflava ar na conduta e o expelia, por fim, através do buraquinho terminal [...].
- Aqui está - disse satisfeito Cristofano no fim do ensaio, ordenando-me seguidamente que fosse buscar água, azeite e um pouco de mel.
Assim que regressei com os ingredientes, fiquei surpreendido ao encontrar o médico atarefado com o corpo seminu de Pellegrino.
- Não colabora, ajuda-me a mantê-lo imóvel.

Deste modo, tive de ajudar o médico a desnudar as redondezas traseiras do meu patrão, que acolheu tal iniciativa de má vontade. Durante o quase braço a braço que se seguiu (e, na realidade, mais devido à falta de cooperação por parte de Pellegrino do que a verdadeira resistência), tive ocasião de perguntar a Cristofano qual a finalidade dos nossos esforços.
- É simples - respondeu-me -, quero fazer-lhe expelir uma boa quantidade de ar inútil.
E explicou-me que o modelo que tinha nas mãos, graças aos tubos dispostos em ângulo recto, permitia praticar sozinho a insuflação, salvaguardando portanto o próprio pudor. Pellegrino, porém, não parecia capaz de a aplicar por mão própria e, nesse caso, tínhamos de ser nós a praticar-lha.
- Mas vai ajudá-lo a sentir-se melhor?
Cristofano disse-me, quase surpreendido com a pergunta, que o clister (uma vez que era assim que alguns costumavam indicar tal tratamento) é sempre adjuvante e jamais de prejuízo: como diz Redi, evacua os humores do corpo com suma placidez sem debilitar as vísceras, e sem as fazer envelhecer como fazem os medicamentos tomados pela boca.
Enquanto vertia o preparado no fole, Cristofano louvou não apenas as lavagens purgantes, mas também as lavagens alterantes, anódinas, litotrópsias, carminativas, sarcóticas, epulóticas, abstergentes e até adstringentes. Os ingredientes benignos eram infindos: podiam fazer-se infusões de flores, folhas, frutos ou sementes de ervas, mas também com os pés e a cabeça do capão, com intestinos de animais e caldo de galos velhos derreados à força de azorrague.
- Muito interessante - disse eu, procurando agradar a Cristofano, embora dissimulasse a repugnância.
- A propósito - acrescentou o médico no final de tão úteis disquisições -, nos próximos dias o convalescente deverá seguir uma dieta à base de caldos, canjas e águas fervidas, pois tem de recuperar de tanta extenuação. Por isso, hoje, podes dar-lhe meia xícara de chocolate, uma canja de galinha e biscoitos embebidos em vinho. Amanhã uma xícara de café, uma sopa de borragem e seis pares de colhões de frango.
Depois de ter aplicado em Pellegrino algumas vigorosas sopradas com o fole, Cristofano deixou-o seminu e encarregou-me de o vigiar até que o benéfico efeito corporal da lavagem se verificasse. Coisa que, com efeito, aconteceu quase de imediato, e com uma tal violência, que compreendi plenamente por que razão o médico me tinha feito transladar as minhas coisas para o quartinho do lado.


(Monaldi & Sorti, IMPRIMATUR - O segredo do papa, Ed. Presença. Lisboa, 2004)

Rembrandt, A lição de anatomia
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