(diego rivera, a noite dos pobres)
Ser a moça mais linda do povoado;
pisar, sempre contente, o mesmo trilho;
ver descer sobre o ninho aconchegado
a bênção do senhor em cada filho.
Um vestido de chita bem lavado,
cheirando a alfazema e a tomilho;
com o luar a matar a sede ao gado,
dar às pombas o sol num grão de milho...
Ser pura como a água da cisterna,
ter confiança numa vida eterna,
quando descer à «terra da verdade»...
Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de Princesa,
e todos os meus reinos de Ansiedade.
(florbela espanca)
(e. hopper, pessoas ao sol)
[...] o aligeiramento é o equivalente moderno daquilo a que chamamos a libertação ou a redenção nas religiões clássicas como o cristianismo. Aquele que aligeira substitui aquele que salva, é a quintessência dos tempos modernos.
Um erro? Sim, talvez. Claro que é um erro para uma cultura passar-se por cima da questão da libertação, é um erro para os homens mostrarem-se mais leves do que aquilo que podem sê-lo. Mas seria também um erro apelar à tragédia com a única finalidade que tudo reencontre a sua digna dureza e que nós possamos de novo enfeitar-nos com a nobreza ontológica do peso.
Para mim, o compromisso entre o leve e o pesado exprime-se da seguinte maneira: tanto aligeiramento quanto for possível, tanta consciência trágica quanta for necessária.
[P. Sloterdijk (1999). Ensaio sobre a intoxicação voluntária. Lisboa. Fenda]
Enfim, contrariamente ao que pode parecer, nenhum pressuposto catastrofista ou optimista quanto ao futuro do nosso país subjaz a este breve escrito [...] Procurou-se dizer o que é, sem estados de alma, mas com a intensidade que uma relação com este país supõe. [José Gil (2004). Portugal, hoje. O medo de existir. Lisboa. Relógio de Água]
ADENDA. Leia-se também «Aconteceu ou não aconteceu?» - pertinente observação de J. Camilo - no Blue Everest e, sobretudo, medite-se sobre a «questão premente neste início de século: para que servem os maîtres-à-penser?»
Ma tu continua e perditi, mia vita,
per le rosse città dei cani afosi
convessi sopra i fiumi arsi dal vento.
Le danzatrici scuotono l'oriente
Appassionato, effondono i metalli
del sole le veementi baiadere.
Un passero profondo si dispiuma
sul golfo ov'io sognai la Georgia:
dal mare (una viola trafelata
nella memoria bianca di vestigia)
un vento desolato s'appoggiava
ai tuoi vetri com una piuma grigia
e se volevi accoglierlo una bruna
solitudine offesa la tua mano
premeva nei suoi limbi adorosi
d'inattuate rose di lontano.
[Mario Luzi, Avvento notturno, (se musica è la donna amata) (1938)]
(Misha Lenn, Tango Argentina)
Poi sulla pista ardente
Lontanamente emerse
La donna spagnola,
era un'ombra intangibile in un soffio
di musiche viola il suo sorriso.
Percepiva l'accento
della notte col senso melodioso
del suo passo e quel ciclo
di libertà inibita era l'evento
triste della sua vita senza scampo.
[Mario Luzi, Avvento notturno, Tango (1938)]
(Frans Masereel)
Um dia há vida. Um homem, por exemplo, de perfeita saúde, nem sequer velho, nenhuma história de doenças. Tudo está como sempre esteve, como sempre estará. Ele passa de um dia a outro, não se ocupa de outra coisa senão dos seus assuntos, sonha apenas com a vida que tem à frente. E então, de súbito, acontece que há a morte. Um homem solta um pequeno suspiro, afunda-se na sua cadeira, e é a morte. O carácter súbito desse facto não deixa o menor espaço ao pensamento, não dá à mente a menor hipótese de procurar uma palavra capaz de a confortar. A única coisa com que ficamos é a morte, o irredutível facto da nossa própria mortalidade. A morte depois de uma longa doença, podemos aceitá-la com resignação. Mesmo a morte acidental, podemos imputá-la ao destino. Porém, o facto de um homem morrer sem nenhuma causa evidente, o facto de um homem morrer simplesmente porque é um homem, deixa-nos tão perto da invisível fronteira entre vida e morte que já não sabemos de que lado estamos. A vida converte-se em morte e é como se esta morte sempre tivesse sido dona e senhora desta vida. Morte sem aviso. O que é o mesmo que dizer: a vida pára. E pode parar a qualquer momento.
(Paul Auster. Inventar a solidão. Porto, Edições Asa).
(Edward Hopper, Room in New York, 1932)
O amarelo torrado da parede do fundo, que ilumina a sala como por efeito de um holofote, e o castanho avermelhado da porta enganam no calor que pretendem emanar. Ou então, estão ali, precisamente, para indicarem que aquela sala no prédio é um lugar de intimidade, entre homem e mulher. De início é a luz quente que salta à vista do observador.
Um olhar sucessivo nota um contraste: o parapeito negro, que serve de moldura à cena, cria um limiar entre o fora - escuro -, e o dentro - luminoso -. Que seja escuro pressagia já o que o interior mostra com evidência.
Ele. Ela. De permeio a mesa despida - o fulcro do quadro. Não há intimidade. Aliás, não há comunicação. Cada qual parece absorto no que faz. Mas é engano. Pouco antes havia expectativas, o vestido vermelho indica-o. A direcção das pernas mostra-o. Mas goraram-se, di-lo o indicador a martelar na tecla, a sombra no rosto e a torção dolorosa do tronco. Não há actividade, mas retraimento e contracção. Isolamento. Angústia na relação. E a mesa despida de permeio.
Ele lê, de mangas arregaçadas, colete e gravata. Está num lugar íntimo, mas podia estar numa escrivaninha de guarda-livros. Não há diferença, nele, entre o dentro - íntimidade - e o fora -esforço na acção. Di-lo a roupa do burocrata. E a mesa despida de permeio.
Impressionam os rostos esbatidos, as fisionomias pouco definidas. Como não se comunica não há identidade. Como não há identidade não se comunica. Não há relação. São pessoas que não o são. Nem na complementaridade sexual. Limitam-se a estar.
Alguém disse que a cena é opressiva na sua banalidade e intimidade. É uma alegoria moderna do tédio profundo. A cidade também vive nesta impotência de ser íntimos, nesta fuga precipitada no isolamento.
[John Ruskin, A courtyard at Abbeyville (1858)]
Logo no primeiro instante há um fascínio que o pátio acende... Talvez pela antiguidade - é de finais do século XV -, talvez pela riqueza dos elementos - as janelas, a porta (e, por cima dela, a escada de madeira), a pipa, o arco, as pedras, os instrumentos de jardinagem, o nicho de Nossa Senhora, os vestígios de uma parreira... -.
Se eu passasse por aqui, numa manhã quente, veria uma cena familiar: uma manta estendida no chão, quadrada e abundante - o meu mundo de então -, com um rebento em panos de bebé, sentado no meio. Ladeia-o uma menina de cinco anos, com puxinho, de vestido branco curto, com dois bolsos, sapatos brancos e meias dobradas, da mesma cor. De pé, parecendo o homem de Vitrúvio, o pai: de mãos nas ancas, pernas alargadas e sorriso na boca, vestido de calças e camisa da mesma cor azulada. A mãe, de carrapito, bonita e exuberante, desce os dois degraus que, da cozinha, dão para o pátio: traz um vestido cor de rosa às florzinhas roxeadas e na mão uma locomotiva de brinquedo.
Dou-lhe um título: a manta no pátio.
Foi na última consoada. A Gena recorda a sua adolescência - era eu puto, sendo ela, minha irmã, cinco anos e meio mais velha. Lembro-me desse tempo. Das paredes do seu quarto forradas a cartazes, que um apaixonado lhe entregava assim que saía a Música & Som (quem se lembra dessa velhinha?).
Recordo. Por cima da sua cabeceira, o Leo Sayer. Nas laterais, um pouco mais afastados do coração, lá estavam os Yes, os Van Der Graaf Generator, seguidos pelos Boney M, pelo Patrick Hernandez... Mais chegado à altura da cabeça, quem sabe para um último relance antes de adormecer ou, até, um beijo oculto, o divo Art Sullivan!
Esta sua paixão agudizou-se com a canção «Jenny lady», que remetia de imediato para «Gena Lady». E era ouvir os seus amigos a repetirem o refrão (e como ela adorava!): «Gena, Gena, Gena lady; Gena, Gena lady come back!».