Abro uma nova rubrica no
cuidado de si:
«lido...» apreciação de coisas lidas. O primeiro post da rubrica é uma recensão do livro
Noi due [Nós as duas] de
Davide Cavagnero, publicado em Itália no ano de 2004 pelo editor
Meridiano Zerro.
NOI DUE narra a história de duas irmãs gémeas, Laura e Magda, que nasceram de mãos dadas, para grande comoção de enfermeiros e médicos no momento do parto. Logo desde o início da obra as duas gémeas são caracterizadas de maneira polarizada: Magda é a mais forte, inteligente, nervosa (rói as peles em redor das unhas) competitiva, obscura e empreendedora das duas; Laura é a mais frágil, a mais tímida, a mais predisposta para a conciliação, a mais solar, aquela que exprime medo e necessidade de protecção.
A mãe das gémeas é a figura parental mais presente, apesar de uma existência algo triste, marcada por constantes dores de cabeça. Dela não se sabe o nome. É quem se ocupa da educação das filhas, quem vai à escola falar com a professora de italiano e que procura fazer a mediação nos conflitos entre as irmãs gémeas. A certa altura, diagnosticam-lhe uma tumor cerebral que em breve a conduzirá à morte. O pai, Paolo, é claramente uma figura ausente, ambígua, agressivo nos modos e no trato e, como se verá no fim da obra, uma figura perversa.
A narrativa está dividida em duas partes. A primeira parte tem a mãe das gémeas por narradora, situa-se entre 1983 e 1985 e tem por função dar contexto e desenvolvimento à história. A segunda parte passa-se nos nossos dias, é narrada por Laura e funciona como epílogo em que ocorre a dramática revelação de Magda: o pai violara-a repetidamente mantendo, depois, uma relação incestuosa com ela; Magda acaba por matar o pai.
É a história, portanto, de uma família aparentemente normal, mas que esconde no seu seio uma terrível verdade. Ora, esta revelação só é feita no fim da obra e permite duas reacções muito interessantes: o efeito de surpresa no leitor e a necessidade de reler novamente o livro à luz desta revelação, fazendo com que as peças do puzzle se encaixem na perfeição. Percebe-se, então, o significado do desenho feito por Magda e que tanto assustou a professora de italiano. É pela boca da mãe – que apesar de estar presente nunca se apercebe (será possível?!) da situação de abuso sexual - que ficamos a saber que «as nossas figuras são horríveis. Eu tenho uma espécie de véu a cobrir-me a cabeça e estou a sorrir. O Paolo aparece desenhado só até ao tronco. E não tem olhos nem boca». Mas percebe-se sobretudo a razão das várias citações do Ana Karenina de Tolstoi, de que refiro uma: «As famílias felizes assemelham-se todas umas às outras; cada família infeliz, pelo contrário, é desgraçada a seu modo». NOI DUE, é pois, a descrição do modo singular como esta família é desgraçada.
Noi Due é um livro muito interessante. É breve, escrito numa linguagem acessível e, sobretudo, essencial, não desperdiçando palavras, imagens ou metáforas e reduzindo ao mínimo a descrição de lugares e ambientes. Lê-se de um fôlego, é intenso na narração e nos sentimentos. Gostei do artifício utilizado (algo Hitchcockiano) de concluir a obra com a revelação inesperada e surpreendente que dá sentido novo à trama e obriga o leitor a ir rever o que leu, deixando-se guiar, qual fio de Ariadne, pela confissão de Magda.
Do ponto de vista literário, é uma obra que oscila entre o conto longo e o romance breve. É o primeiro livro de Davide Cavagnero e surpreende pelo ascetismo linguístico: talvez fosse de esperar, num primeiro livro, uma ocasional demonstração de virtuosismo ou de eventuais manifestações da singularidade do autor; pelo contrário, Cavagnero é essencial, vai ao que interessa, coloca as palavras ao serviço da acção, dando a entender que, antes de mais, tem uma história surpreendente para narrar. O resultado é muito positivo: sai-se bem na criação do suspense e consegue manter o leitor agarrado à pagina. A não perder: no original ou quando, e se, sair tradução portuguesa.