1. Talvez não nos questionemos sobre o que o nosso corpo experimenta. Ou apenas nos preocupemos com a revisão anual a que o submetemos para lhe permitir circular sem percalços. Ou talvez o consideremos um ilustre desconhecido remetido para a categoria dos pesos a suportar - mais um - numa vida abnegada e rotineira que nos vê protagonistas entre a casa, o trabalho e o caminho entre os dois.
2. Mas este corpo que somos, este corpo que temos, na sua realidade concreta e carnal, no «aqui e agora» da vida, é um símbolo que nos dá a posição exacta do homem no universo. O corpo é símbolo que une: o exterior com o interior; o que está em cima com o que está em baixo; a superfície com a profundidade.
3. Se formos homens e mulheres atentos é suficiente que observemos com atenção aquilo que o corpo faz, algumas das suas capacidades, para criarmos uma espécie de filosofia de vida corporal. Imagine-se, pois, uma espiritualidade corporal, passe o paradoxo, que orienta a nossa vida segundo cinco parâmetros, como as faces de um pentaedro.
4. O nosso corpo indica-nos, antes de mais, que façamos experiência da sua verticalidade. Somos o homo erectus, que, no seu endireitar-se primordial, se eleva do chão e afirma-se como ser que caminha, impelido pela energia interior do desejo, para o que está em cima, para o transcendente que dá sentido e engloba a existência.
5. O equilíbrio é outra experiência fundamental que o corpo nos convida a viver. Os primeiros passos da criança e o vacilar alquebrado do idoso são os extremos de uma parábola, ascendente e descendente, que diz urgência exterior de encontrarmos a nossa posição autónoma no mundo e imperativo interior de nos harmonizarmos ao nível psico-espiritual (os sentimentos, as cognições, os comportamentos, as motivações...).
6. O corpo coloca-nos também perante a experiência do respirar e do bater ritmado do coração, movimentos arcaicos e sempre renovados, que nos fazem sintonizar com o pulsar do próprio universo, aliás, com a vida do próprio Criador. Quantas vezes a eles nos ancoramos para o relaxamento ou para a oração!
7. Por fim, a experiência dos sentidos é o momento alto de uma espiritualidade corporal. O homem alienado «olha sem ver, escuta sem ouvir, toca sem sentir, come sem saborear, movimenta-se sem ter consciência física e inala sem se aperceber do cheiro ou da fragrância» (Leonardo Da Vinci). A espiritualidade corporal convida-nos a «sentir tudo de todas as maneiras» (Álvaro de Campos) e a proclamar com a nossa existência a oração do poeta:
obrigado Meu Deus por mais este espantoso
dia:pelos saltitantes e virentes espíritos das árvores
e um azul autêntico sonho celeste;e por tudo
o que é natural o que é infinito o que é sim
(eu que morri estou hoje vivo de novo),
e este é o dia de anos do sol;este é de anos
o dia da vida e do amor e asas:e do alegre
grande evento ilimitavelmente terra)
como poderia saboreando tocando ouvindo vendo
respirando qualquer-erguido do não
de todo o nada-ser simplesmente humano
duvidar inimaginável de Ti?
(agora os ouvidos dos meus ouvidos despertam e
agora os olhos dos meus olhos estão abertos)
(e.e.cummings)
8. Há cuidado de si quando se cria uma saudável auto-pedagogia do corpo. Esta deverá implicar, pelo menos, os seguintes movimentos de crescimento: abolir o desprezo do corpo; superar o culto do corpo; recusar a indiferença em relação ao corpo; aliar-se ao corpo e aceitá-lo, fazendo dele um guia de vida espiritual - segundo os parâmetros já referidos -; usufruir das potencialidades do corpo e, por fim, mas mais importante de tudo, aprender a entregar o próprio corpo «ao amor, ao ardor, altruísmo e dedicação» (T. S. Eliot).